Margarida Vale de Gato
No rascunho que Fernando Pessoa usou
para a tradução do Corvo de Edgar Poe
há no fim versos talvez seus que rasurou.
«Dic. de Rimas», em letra legível vem
por cima; depois, porém, o que não quis
que viessem a ler, nem ele a ter de escrever,
afigura-se tão honesto quanto sofrível.
Devo admitir que não pude coibir-me
(julgo eu que nenhum outro, ao descobrir
o bilhete ignorado de um morto)
a tentar ver se ele traduzia, se
aquilo era poesia ou um apelo
e a mim cabia, por mais
que inexacto, transcrevê-lo.
Se julguei entender a certo passo
o verbo «treslêem», era chato
que ao primeiro sinal faltasse o traço;
olhando de novo, talvez achasse
«conteem» (atestando no passado
mais desafogo ortográfico)
o que era menos ousado
embora não desdissesse
aquilo que me comove
na p. 229
do Livro do Desassossego,
«Ler é sonhar pela mão de outrem.
Ler mal e por alto é libertarmo-nos
da mão que nos conduz.»
Isto sobretudo quando, como dizia
o galês que o Ivan Junqueira traduz,
«Grnde é a mão que mantém
o seu domínio sobre um homem
por ele ter escrito um nome.»
(Neste ponto, nota de rodapé onde se lê:
Jerónimo Pizarro, em comunicação pessoal,
diz-me que o trecho não é do livro afinal.)
Devolvendo-me, por linhas tortas,
numa resmaa arrumada que o culto nacional
não só numerou como hoje à disponibiliza
reflexão do que fazer
com o papel em que um homem,
nem de propósito por muitos
considerado o maior génio
da língua portuguesa do século
vigésimo, depositou quem sabe
o seu mais pungente recado, o qual
riscou, mas não deixou por isso de guardar