
Luiz Roberto Benatti.
O que parece ter sido espontâneo numa
determinada época, com o passar dos anos, torna-se excepcional ou ficcional. A
cidade funciona como cenário de mil desejos e nela as coisas se passam como num
filme. Nele fazemos quase tudo: redator de texto, diretor, figurinista,
iluminador, protagonista e antagonista. Às vezes, o filme enrola-se ou
irrompe num fotograma algo misterioso, no qual certamente iríamos surpreender o
que antes jamais pôde ser entrevisto, ou então nele identificaríamos Fulano ou
Sicrana, num gesto furtivo e romântico, parte do rosto meio encoberta. Sempre
houve e haverá sempre cenas negadas, rejeitadas ou retrabalhadas pelo
imaginário solto, marcadas ou não pelo interdito ou entrevistas por trás das
taboinhas da veneziana da sala ou do quarto. Ali pelos anos 15s ou 30s, a zona
do meretrício localizava-se na Rua Pernambuco, depois da 13, ou na Amazonas com
a Alagoas. Sugeriu Dirceu Zaccaro que, na figura ousada de Mariquita,
tivemos nossa Lady Godiva, ou Mata Hari ou então Greta Garbo, sua intérprete
congenial, enfim a criatura misteriosa que desencaminhava jovens afoitos ou
dândis comprometidos, ou, quem sabe, maridos travestidos de pudor e ousadia.
Não se iluda: a minúscula cidade da época estava sujeita à ampliação pelo
imaginário.
A verdadeira Mata Hari, Gertrud Margarete Zelle, de origem holandesa, acusada
de exercer, na alcova, espionagem a favor dos alemães, foi fuzilada por
pelotão francês em 15 de outubro de 1917, um mês depois da emancipação política
de CTV, ocorrida de fato em 12 de setembro de 1917. Aos domingos, depois da
missa matinal, de calças compridas, cigarro à boca e cheia de charme, Mariquita
trotava pelo centro num portentoso corcel branco. Claro que o corcel tinha de
ser obrigatoriamente branco ou cor de mel. Se chegou a cavalgar nua, como
nua se apresentava a dançarina espiã no palco, nas madrugadas de
luar prateado, não sabemos. Seja como for, as senhoras respeitáveis de CTV
remordiam-se em ciúme e inveja. Sem o
cinema dos primeiros quarenta anos do século século XX teríamos nos limitado a rachar lenha, preparar a
bóia, lavar-se da cintura para baixo e dormir até a madrugada seguinte.