
Luiz Roberto Benatti
Talvez minha mãe tivesse razão (as mães têm sempre razão, ainda que estejam em algumas ocasiões redondamente equivocadas) ao chamar-me de cínico. Espumei, xinguei, roí unhas ao ouvir isso porque me lembrava das aulas de Latim: cínico procedia de cino, cão, e queria dizer cachorro pequeno.Ser chamado de cachorro é de lascar. Desses bem enfezados que mordem o próprio rabo, a sombra ou a mão do dono.Triscou ou não triscou, lá vem dentada. Todavia, penso que descobri de onde minha mãe tirou a idéia de que eu era cínico: com 40 anos nas costas, não pensava no amanhã e muito menos em me amarrar com mulher, fosse jovem, fosse amadurecida.Para minha mãe fora do casamento não haveria salvação. Não se brinca com mãe pré-centenária!As mães inventaram o sentimento de perda e o medo do futuro. Eu queria é farrear, uma para cada dia da semana. Tinha pinta, corpo sarado, bigodinho alinhado, grana e carrão. Libido espalhada pela derme dos pés à cabeça. Elas adoravam meus pés bem torneados, os dentes alvos, os cabelos ondulados. Uma piscadela fatal, a mina andava dez passos na rua. Se olhasse para trás, estava na rede e o que cai na rede é peixe. Minhas tórridas paixões duravam três dias, uma semana, duas no máximo.As mulheres talvez queiram a permanência, os homens a contingência. Depois o Degas aqui se mudava de cais: morena, japonesa, loira.Meu pai foi muito velhaco e quem sai aos seus não se degenera. Fui internacional e plurirracial. Depois que você encanece e vem o pigarro, cara, as coisas começam a complicar-se. Aquela que me pegou tanto pelo chakra ventral quanto pelo solar chamava-se Ingrid. Indescritível beleza que não murchava nem com porre de dois dias seguidos no mais enfumaçado dos pubs londrinos.Ela voltava para o mocó de olheiras fundas, mas ainda assim tinha lenha para queimar por muitas horas. Percorremos o mundo, as praias de areias mais claras do globo e fizemos amor até mesmo na masmorra da Torre de Londres, local frio, insalubre e amedrontador. Muitas vezes pensei que ela fosse decepar-me o nariz ou o lóbulo da orelha. Ela urrava, eu gania, nós balíamos. Feras na cidade e no campo. Estávamos siderados um no outro.Eu era o seu sol, ela a minha galáxia. Tudo nela era cheio de encantos e nessa félix uncia só localizei uma esquisitice: adorava tomar banho de ciclo completo na máquina de lavar, até o dia em que não pude mais reanimá-la com respiração língua a língua.Mil rotações por minuto.Quando abri a escotilha, a cabeça tombou para fora. Cachorra no cio, louca varrida. Chamei a polícia técnica, tirei com os olhos banhados em lágrimas esta foto e vendi a máquina por 40 paus no ferro-velho. Continuo cínico. Minha mãe faleceu há uns 20 anos. Ingrid. O nome de família era Launderall.