
Manuel Bandeira
O poeta é um abstrator de quinta-essências líricas. É um sujeito que sabe desentranhar a poesia que há escondida nas coisas, nas palavras, nos gritos, nos sonhos. A poesia que há em tudo, porque a poesia é o éter em que tudo mergulha, e que tudo penetra.
O poeta muitas vezes se delicia em criar poesia, não tirando-a de si, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, das suas experiências, mas “desgangarizando-a” como disse Couto de Barros, dos minérios em que ela jaz sepultada: uma notícia de jornal, uma frase ouvida num bonde ou lida numa receita de doce ou numa fórmula de toilette.
Há quem censure o poeta por isso. Não me parece avisada tal atitude: a poesia é como o rádium – o milésimo de miligrama constitui uma riqueza que não se deve deixar perder.
Eu, por mim, vivo cada vez mais atento a essa poesia disfarçada e errante. E um dos exercícios que mais me encantam é desentranhar um poema que está não raro desmembrado, desmanchado numa página de prosa.
Como sou advertido da presença do poema? Acho que é quase sempre por uma imagem insólita ou por um encontro encantatório de vocábulos.
Vou dar um exemplo. Há pouco tempo o poeta Augusto Frederico Schmidt escreveu sobre outro poeta uma página e meia de excelente prosa. No meio do escrito aparecia uma imagem de extraordinária beleza. Para achá-la era preciso ter, como Schmidt tem, uma extrema agudeza de sensibilidade para apreender a poesia mais fora do alcance do comum. Todo o mundo sente a poesia formidável de uma noite de luar. Mas sentir a serenidade “com que o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas”, isso é que fia mais fino. Não é que muita gente já não tenha sentido isso. Deve ter sentido, porém, tão vagamente, ou sentiu qualquer coisa que não soube bem que era isso, eu sei lá. Em todo o caso, creio que até hoje, desde que o mundo é mundo, ninguém exprimiu tal sentimento.
A imagem me pôs alerta. O meu instinto de “desgangarizador” estava acordado. – Aqui deve haver poema, disse eu comigo. Fiz então o que Tolstoi costumava fazer com a prosa dos evangelistas: ele sublinhava a traço vermelho o que nela lhe parecia sem sombra de dúvida marcado com o selo divino do Cristo. Voltei a reler a prosa de Schmidt, procurando nela a parte de Deus.
A experiência deu resultado. O poema apareceu como o precipitado de uma reação química.
Risquei a lápis vermelho: na segunda linha “É uma luz triste mas pura”, etc.; no começo do quarto período “A solidão é em F. o grande sinal de seu destino”; seis linhas adiante “Da poesia feita como quem ama e quem morre, caminhou ele para uma poesia de quem vive e recebe a tristeza naturalmente como o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas”; no meio do período seguinte “O pitoresco, as cores vivas, o mistério e o calor dos outros seres o interessam realmente, mas ele está apartado de tudo isso, porque F. vive na companhia de seus desaparecidos, dos que brincaram e cantaram um dia à luz das fogueiras e estão, no entanto, dormindo profundamente”.
Com a transposição da imagem das estrelas e uma ou outra insignificante alteração ou acréscimo de palavra, ficou assim recomposto o poema de Schmidt:
PALAVRA A UM POETA
A luz da tua poesia é triste mas pura.
A solidão é o grande sinal do teu destino.
O pitoresco, as cores vivas, o mistério e calor dos outros seres te interessam realmente
Mas tu estás apartado de tudo isso, porque vives na companhia dos teus desaparecidos.