Luiz Roberto Benatti
Nos tempos do cólera, você terá de pensar por semelhança, possibilidade complicada, porque, para Aristóteles, coisas semelhantes não são iguais. Nos tempos do cólera, tanto o amigo quanto a amizade, são como um pássaro numa gaiola: se a abrirmos, não ouviremos mais seu canto; se o mantivermos preso, ele envelhecerá até desaprender a antiga melodia. Nos tempos do cólera, o tripé da Revolução francesa terá uma de suas pernas amputada, como se fez inúmeras vezes na Guerra civil americana e, desse modo, claudicante, a perna de pau substituta fará muito barulho por nada, além de estar sujeita ao carunchamento. Nos tempos do cólera, o Executivo infla-se a ponto de parecer-se com um zepelim extemporâneo mas pronto para incendiar-se, ludibriando os passageiros com a recusa em devolver-lhes o preço da passagem. Nos tempos do cólera, o Legislativo aninha-se, friorento, a um canto e, quando tem fome e sede, balbucia mal uns monossílabos medrosos. Nos tempos do cólera, como novos crentes duma seita de leigos desorientados, abrimos nossas bocas e erguemos nossos braços até que a única perna sadia do tripé – o Judiciário – lembre aos poderes atrofiados que a escola precisa servir a santa merenda de cada dia, que o ônibus urbano redesenhe na geografia da cidade um trajeto não-urobórico, que a saúde devolva ao doente a aspirina que alivie a febre, que os museus deveriam ser reservas de memória, cuja falta faz da vila um barco sem rumo. Nos tempos do cólera, o osso da perna arrebentada do major Daniel Sickles é como um amuleto que nos protegesse contra o retorno do reprimido.