Luiz Roberto Benatti
Há anos freqüento minha psicanalista como quem degusta, com um velho amigo dileto, um bom vinho tinto com gorgonzola e azeite grego. Nós nos conhecemos desde os tempos em que meu pai amarrava o velho cão perdigueiro com lingüíça para garantir-se boas codornas na próxima caçada com o confrade Claudino Conca. Bons tempos em que a amizade era saborosa como nos tempos de Cícero e ninguém pensava em tirar casquinha do que pertencia ao outro. Tudo ou quase tudo não tem mais o rosto de outros tempos: o telefone intimista ficou despudoradamente público e toca, a qualquer hora, na ópera ou no motel; artistas e outras criaturas charmosas invadiram o mundo dos meios de comunicação de massa e falam que falam de como emagreceram 2 quilos no último Inverno ou de como recuperaram, depois do parto, os contornos do baixo ventre. Não posso afirmar, de modo taxativo , que a exposição pública é o pior de nossos dias, mas devo admitir que vivemos sob o império do olho que olha e vê o óbvio, lambe as rugas do canto dos lábios e degusta o penúltimo tom de vermelho do batom das deusas televisivas. O cenário mudou e todas as pessoas, ao deslocar-se do escritório para o automóvel e deste para o restaurante ou o shopping, concentram-se no desenho do queixo, nos movimentos halterofilísticos das nádegas, na armação do penteado e no recorte das unhas das mãos e dos pés desnudos. O riacho de Narciso espraiou-se tanto, que nele já não se vêem mais as imagens fragmentadas tantas são as criaturas líquidas ali projetadas. Minha psicanalista nunca foi dada à confidência pessoal, porque, afirmou com convicção junguiana, aquela história de transferência de Freud não passava de sacanagem.Transferência? Encantar-se com o paciente ou vice-versa? Afaste de mim o cálice da poção mágica do amor. No entanto, naquela manhã muito quente de agosto, ela me disse que fora atingida por uma pedra espacial, negra, dura e muito pesada: o jovem cliente portador de DOC a chamara de bruxa velha e o adjetivo colou-se no inconsciente traduzido como “decrépita”. Depois que o menino biruta voltou para casa com o motorista uniformizado, minha psicanalista foi à toilete e encarou de frente o espelho e a desgraça. Cara, que coisa horrível foi constatar que o enrugamento da pele do rosto a deixara como um pergaminho amarfanhado. Amassado e cor âmbar como lâmpada de lupanar. “Bem eu”, disse de si para consigo a psicanalista, “que repeti, por 30 anos, que as rugas são as marcas da alma, como a movimentação de terras no planeta. Bem eu que adorava olhar para os retratos do poeta Auden e ver as minúcias dum rosto sinuoso como o caminho estroboscópico duma lesma embriagada. Mereci!” Minha psicanalista só não telefonou para o velho mestre com quem fizera análise, porque o homem, pelo Alzheimer, não distinguia mais melancia de abóbora vermelha. Depois dessa manhã mais complicada e perigosa que o desembarque das forças aliadas na Normandia, com o imprevisível desastre, fiquei muitos meses sem voltar ao consultório. A criança em mim queria ser mimada pelo calor da voz melodiosa da amiga, razão por que eu havia-me esquecido de como oferecer-lhe o ombro do conforto fraternal. Um dia armei-me de redobrada coragem e, mais uma vez, apertei a campainha do consultório. Fui atendido por um cara, cheio de pose e empáfia, como o Kevin Costner, cuja armação corporal era capaz de converter heterossexual em metrossexual num estalar de dedos ou num simples piscar de olho. “O que é que o senhor deseja?”, perguntou o tipão pelo vão estreito da porta.Ia responder-lhe, com rima, que queria um copo de cerveja, mas fiquei intimidado e o guarda-costas poderia enfiar-me a mão na cara. Disse: “Sou um velho cliente da doutora …”
Costner cortou o meu barato ao meio e respondeu: “Aqui ninguém mais é velho ou novo, amizades estão proibidas, confidências nunca mais, os velhos tempos estão nos museus de quinquilharias. Passar bem e lavar a seco.” Enfiei a viola no saco e fiz meia volta, quando resolvi perguntar ao homão sarado:”Quem é o amigo?Qual a sua função no pedaço?” Azedo, ele falou alto: “Sou o PPA da psicanalista.PPA, senil carente, significa Psycho personal advisory, quer dizer, Conselheiro psiquicopessoal.Salário: 15 pilhas ao mês, casa, comida, roupa lavada e carrão zero. Freud que berre no túmulo. Lacan, nem falar, porque esse tinha amigos loucos, os surrealistas comiam jiló com champanhe.”